TEMAS DE ECONOMIA E GESTÃO

15 de janeiro de 2017

Porque é que saber gerir o tempo está a arruinar-nos a vida?


Porque é que saber gerir o tempo está a arruinar-nos a vida?

Há uma semana entrou em vigor um França uma lei que dá aos trabalhadores o “direito a desligar” o email depois do horário de trabalho. Há anos que os gurus da eficiência e produtividade nos querem ensinar a trabalhar melhor (leia-se, mais e em menos tempo).
OLIVER BURKEMAN

15 de Janeiro de 2017, 7:02 in Público 




A sempiterna demanda do ser humano por uma vida plena – face ao dado inevitável que é a morte – entrou numa nova etapa numa segunda-feira do Verão de 2007. No campus da Google em Silicon Valley, a equipa estava prestes a ouvir a palestra de Merlin Mann, um autor de best-sellers e assumido nerd. Para estes utilizadores da Google, o correio electrónico era o maior problema que se lhes deparava no seu quotidiano profissional – uma praga da era digital que lhes tomava conta dos dias e os privava de tempo para se dedicarem a outras tarefas, quiçá para terem uma vida. Mann, a estrela em ascensão do movimento da “produtividade individual”, parecia ter a resposta.

“Inbox zero”, como Mann chamou ao seu sistema, assenta numa ideia simples: todos nós lidamos mal com o email. Passamos a vida a consultar cada mensagem que entra, e a ideia de que teremos de responder acaba por nos deixar um bocadinho stressados. Mas não o fazemos de imediato, logo, os emails acumulam-se e, aí sim, entramos em stress. No dia da palestra, Mann tinha a seguinte proposta para a sua audiência: de cada vez que consultamos a caixa de correio, deveríamos logo reduzi-la a zero, limpá-la. Por passos: verificamos o que cada email exige de nós – uma resposta imediata; guardar o ficheiro para resposta posterior; atirá-lo para o caixote do lixo. Depois, agimos em conformidade. E repetimos até não termos mais nenhum email. Finda a tarefa, fechamos o Inbox e vamos à nossa vida.


“Foi uma maneira de alertar as pessoas para isto: Já sabemos que odiamos o correio electrónico, mas estes pequenos gestos podem fazer a diferença. Achava que estava a ser útil às pessoas”, recordou Mann meses depois.

Na verdade, Mann acabava de esbarrar com um filão que induz altos níveis de ansiedade na sociedade em geral. Foram milhares de milhões de pessoas que assistiram online à sua palestra e o “Inbox zero” foi embrionário de um número infindável de posts em blogues, já para não falar de ter sido a fonte de inspiração para muitos livros e aplicações. O “Inbox zero” era a “dieta Atkins” para tudo quanto é nerd: ou nós próprios a estávamos a experimentar ou alguém à nossa volta o fazia.

O 'Inbox zero' [sistema proposto pelo guru Merlin Mann] era a 'dieta Atkins' para tudo quanto é nerd: ou nós próprios a estávamos a experimentar ou alguém à nossa volta o fazia.

Os discípulos de Mann apressaram-se a postar capturas de ecrã onde se viam as suas Inbox vazias; a revista New Yorker, antecipando de forma inteligente os interesses do seu fiel séquito de leitores, catalogou o sistema de Mann como estando “entre a cientologia e a cultura zen”. O New York Post apelidou-o de “uma treta”.

Tanto bruaá gerado à volta de algo que, afinal, não passa de um kit de instruções técnicas para lidar com a informação que chega às caixas de correio só se justifica porque, de facto, o email se tornou algo muito mais abrangente do que uma mera questão técnica. Funciona como uma espécie de infinita lista de “coisas a fazer”, à qual, ainda por cima, qualquer pessoa do planeta pode acrescentar o que quer que lhe passe pela cabeça. Para os “especialistas” em economia digital, é tanto uma metáfora quanto um mecanismo para chegar a vias de facto numa missão que se afigura cada vez mais inviável: lidar, num tempo finito, com uma quantidade infinita de tarefas.
Tempo a fugir-nos por entre os dedos

A maioria de nós já teve a sensação algo aterradora de estar assoberbada – aquela sensação de que a vida não pára, o que até pode ser entusiasmante. Contudo, sabemos também o quanto o tempo nos escapa por entre os dedos. E, hoje em dia, o movimento de “produtividade individual”, que Mann ajudou a lançar e que promete suavizar a “dor” e ajudar a gerir o tempo recorrendo à preciosa ajuda de smartphones e da Internet, cresce como nunca antes se viu. Na App Store, se formos à categoria “produtividade”, encontramos milhares de apps. Há um software que simula o ruído característico de ambiente de trabalho num café (estudos nas áreas da Psicologia mostram que este tipo de ambiente ajuda as pessoas a focar-se no trabalho). Há um editor de texto que vai apagando as palavras que escrevemos se não formos suficientemente lestos as escrevê-las.

Querermos ser cada vez mais “produtivos” enquanto “indivíduos” – de modo a fazermos o melhor uso possível do nosso tempo – tornou-se o leitmotiv da era em que vivemos. Charles Duhigg, um jornalista do NYT, escreveu dois livros sobre o tema. Durante mais de 60 semanas, os títulos encabeçaram a lista de best-sellers nos Estados Unidos. Um outro livro, The Four Hour Work Week (numa tradução literal, A Semana de Trabalho de Quatro Horas), teve mais de 1 milhão e 350 mil leitores pelo mundo inteiro. Há blogues que fornecem dicas para “Encontros produtivos” – e para os potenciais resultados de um “encontro produtivo”; para uma “paternidade produtiva” e até há hotéis onde o cliente é recebido com um “tenha uma estadia produtiva”.


1 milhão e 350 mil leitores pelo mundo inteiro teve o livro de "The Four Hour Work Week", do jornalista do NYT Charles Duhigg

Nos últimos anos, o arquétipo de Silicon Valley tem sido o de eliminar do nosso quotidiano todas as irritantes fricções que nos tolhem a vida. Em troca, é-nos dado mais tempo e maior disponibilidade mental – seja para fazer compras, lavar a roupa ou simplesmente comer, se por comer entendermos um gelatinoso suplemento vitamínico como o Soylent, que supostamente fornece todos os nutrientes de que o ser humano precisa. Para tudo há uma resposta e sempre o mesmo fito: mais tempo para termos tempo para trabalhar mais.

E, contudo, a verdade é que frequentemente esbarramos com exemplos de como todas estas técnicas pensadas para nos facilitar a dita “produtividade” acabam por ter o efeito contrário, exacerbando as nossas ansiedades. Quanto mais hábeis parecemos estar na forma como gerimos o tempo, mais parece que ele nos escapa por entre os dedos. Não foi por concluírem o desafio “Inbox zero” que as pessoas ficaram mais calmas. Alguns interpretaram o sistema como se cada email merecesse uma resposta, logo ficaram ainda mais agarrados ao correio electrónico – “O que me deixa doente”, confessa Mann. Outros ficaram ainda mais nervosos com a ideia de que, deixando entrar novos emails, estariam a conspurcar uma caixa de correio que se deveria manter imaculada, e consequentemente passaram a consultá-la de forma ainda mais obsessiva. A mim, a experiência do “Inbox zero” deixou-me aterrado: à medida que me ia tornando hipereficiente a limpar a caixa, mais mensagens iam entrando. E, no final das contas, o acto de responder a um email leva a nova troca de emails e assim sucessivamente. (Pelo contrário, quando se é negligente a responder, descobre-se que isso até traz vantagens. E das duas uma: ou as pessoas acabam por descobrir uma solução alternativa para aquilo que estavam tão ansiosas por resolver ou então a tal crise que achavam poder vir a acontecer nunca acontece.)

O fascínio por esta doutrina de gestão do tempo é que, talvez um dia, possamos, finalmente, ter tudo sob controlo. Vivemos, contudo, numa economia moderna para a qual o trabalho é cada vez mais ilimitado. E se parece não haver limite para o número de emails que recebemos, então a ideia de um “Inbox zero” acaba por não ser redentora. Continuamos, quais Sísifos, a fazer rolar o pedregulho montanha acima até ao fim dos nossos dias – só que o fazemos um bocadinho mais rápido.


FotoLEE WOODGATE/GETTY IMAGES

E se procrastinarmos?

Depois da palestra em Silicon Valley, Mann divulgou um vídeo online, também ele um bocadinho frenético, em que anunciava que tinha acabado de assinar contrato para transformar o “Inbox zero” em livro. Mas, sendo ele um guru da “produtividade”, a sua carreira já demonstrava que havia ali uma situação de conflito interno. “Comecei a ganhar muito dinheiro. Mas também me sentia uma pessoa horrível”, confessou Mann no princípio deste ano. “Este tópico da produtividade pode induzir à pior procrastinação possível. Se por um lado até pareço estar mergulhado em trabalho, por outro, o que estou a dizer às pessoas é: ‘Ora venham cá ver como podem trabalhar melhor’, em vez de as deixar trabalhar de facto!”

O livro falhou a data de publicação. Fãs e curiosos começaram a fazer perguntas. Mais dois anos passados e Mann apareceu com um autoflagelador ensaio em que anunciava abruptamente que tinha atirado para o lixo todo o projecto. Eram três mil palavras que mais pareciam o uivo profundo de um homem. Um homem que, ironia, nunca conseguiu arranjar uma manhã para estar com a filha de três anos porque estava sentado “à secretária a teclar tretas sobre como gerir melhor o tempo” que, esperava, “fossem do agrado do editor”.


Ignorei, ainda que involuntariamente, os meus próprios conselhos sobre como nunca deixar que o trabalho desse cabo das coisas boas, Merlin Mann

Assumiu que se sentia culpado por “abandonar [as minhas] prioridades para estar a escrever sobre prioridades... Ignorei, ainda que involuntariamente, os meus próprios conselhos sobre como nunca deixar que o trabalho desse cabo das coisas boas”. Sugeria, contudo, que talvez viesse a escrever um outro tipo de livro, um que falasse sobre aquilo que verdadeiramente interessa mas esse livro nunca conheceu a luz do dia. Diz Mann: “Agora estou um bocado fora desse frenesim da produtividade. Se o uso que fazemos desse alto nível de rendimento só nos leva a ficarmos ainda mais soterrados em trabalho. como é que vamos saber se, de facto, as coisas funcionam?”

É muito compreensível que tentemos responder aos desafios da vida moderna tornando-nos cada vez mais eficientes e rentáveis. Mas e se se der o caso de concluirmos que todo este rendimento só vem piorar as coisas?

Ouvir Séneca


Se tivermos em consideração que a esperança média de vida se resume a 4 mil semanas, é um bocadinho inevitável ficarmos ainda mais ansiosos com a forma como as vamos usar da melhor maneira possível. Somos uns privilegiados por podermos fazer uso das nossas capacidades mentais e traçar planos ambiciosos quase até ao infinito. E, no entanto, temos tão pouco tempo para os pôr em prática. Por isso, o problema de como gerimos o tempo recua quase até ao primeiro século d.C., quando o filósofo romano Séneca escreveu Da Brevidade da Vida. “Este tempo que nos é dado escapa-se-nos de forma tão veloz e rápida que a maioria já chegou ao fim quando finalmente estaria preparada para viver”, e nisto Séneca censurava os seus concidadãos de ocuparem os dias com futilidades ou “torrando os corpos ao sol”.

Está bom de ver que o desafio de vivermos a nossa vida o melhor possível não é, pois, nada de novo. Mas também não nos enganamos se dissermos que, naquele primeiro século, os cidadãos de Roma não viviam propriamente aquilo que hoje conhecemos como o pânico da “produtividade”. (A resposta de Séneca à questão de como devemos viver nada tem que ver com tornarmo-nos mais activos e/ou produtivos. Antes, o que Séneca nos propõe é uma troca: passemos o dia a filosofar em vez de almejarmos riqueza ou promoção no trabalho.)

O que há de verdadeiramente moderno neste nosso devir é sentirmo-nos obrigados a reagir à pressão do tempo, tornando-nos o mais eficientes possível – mesmo quando nem daí advém o alívio que se esperaria.

Este tempo que nos é dado escapa-se-nos de forma tão veloz e rápida que a maioria já chegou ao fim quando finalmente estaria preparada para viver”SÉNECA.

A premonição de Keynes

A questão à volta de como gerimos o tempo deveria ter sinais de melhoria à medida que a sociedade avança e não o seu contrário. Já em 1930, John Maynard Keynes deixava uma previsão, que se viria a tornar famosa, para o século vindouro: que o crescimento económico nos iria conduzir a uma semana de trabalho de não mais de 15 horas. Ao postular tal premonição, Keynes deixou outro grande desafio para a humanidade: saber como gerir tantas horas mortas. Os economistas ainda mantêm acesa a discussão sobre as razões pelas quais chegámos a resultados tão distintos daqueles que Keynes previa na década de 1930. Há uma resposta muito simples e chama-se “capitalismo”.

Keynes parece ter assumido que, tendo nós satisfeito as necessidades mais básicas – e, vá lá, um ou outro desejo que pudéssemos acalentar –, estaríamos a borrifar-nos para o resto do trabalho. O que sabemos é que, em vez disso, continuamos incessantemente em busca de novas necessidades, às quais temos de dar resposta. Dependendo do degrau que ocupamos na escada económica, sentimos que é impossível, ou pelo menos parece ser impossível, trabalharmos menos em troca de termos mais tempo disponível.


Os economistas ainda mantêm acesa a discussão sobre as razões pelas quais chegámos a resultados tão distintos daqueles que Keynes previa na década de 1930. Há uma resposta muito simples e chama-se 'capitalismo'

Em 1898, o engenheiro Frederick Winslow Taylor foi contratado por uma empresa da Pensilvânia, a Bethlehem Steel Works, com a missão de a tornar mais eficiente. Hoje, podemos dizer sem margem para dúvidas que Winslow foi o primeiro guru da História em gestão do tempo – e o pai do conceito de “produtividade individual” enquanto solução para o problema de nos sentirmos pressionados pelo tempo. “Naquela paisagem da Pensilvânia, percebia-se a vastidão de quilómetros ocupados pelo estaleiro industrial. Ele observava os operários a carregar barras de aço de 40 quilos para cima dos vagões”, descreveu Matthew Stewart no seu livro The Management Myth (numa tradução literal, O Mito da Gestão). “E havia ali umas valentes 80 mil toneladas para carregar e despachar rapidamente porque a guerra hispano-americana assim o exigia. Taylor semicerrou os olhos e pensou: havia ali desperdício de mão-de-obra com certeza.”

Segundo os cálculos de Taylor, cada operário da Bethlehem deveria conseguir carregar umas 12,5 toneladas por dia. E, quando propôs a uns “calmeirões húngaros” pagar-lhes mais uns trocos se trabalhassem mais e melhor, viu que não estava enganado. Segundo os cálculos de Taylor, e extrapolando para um dia completo de trabalho com algumas pausas programadas, cada homem estaria a conseguir carregar quatro vezes mais, o equivalente a 50 toneladas.

É óbvio que os operários não gostaram de saber que teriam de trabalhar mais pelo mesmo valor, mas Taylor não parecia minimamente preocupado com a felicidade destes homens: eram pagos para trabalhar e não para compreender esta nova filosofia de “uma gestão científica do tempo”. “Um dos primeiros requisitos para um homem que carrega ferro fundido é que seja tão estúpido e fleumático que na sua aparência e capacidade cognitiva se assemelhe a um touro... tão estúpido que nem saiba o significado da palavra ‘percentagem’.”

O conceito 'eficiência' foi plasmado em todo o lado – de cabelhaços na imprensa à publicidade, de manuais de negócio a boletins paroquiais”Jennifer Alexander, historiadora

Para esta ideia de eficiência, Taylor fundamentou-se na engenharia mecânica da Revolução Industrial. Era uma forma de transpor para os humanos o raciocínio aplicado à maquinaria pesada. E deu resultados: a carreira de Taylor disparou, passou a fazer palestras e tornou-se consultor de várias empresas. Segundo a historiadora Jennifer Alexander, o conceito “’eficiência’ foi plasmado em todo o lado – de cabelhaços na imprensa à publicidade, de manuais de negócio a boletins paroquiais”.
Carrascos das nossas próprias vidas

Nas primeiras décadas do século XX, o Movimento Eficiência Nacional galvanizava políticos à esquerda e à direita num Reino Unido em pânico com uma potencial ascensão do poder germânico. (“Neste momento”, escreveu o Spectator em 1902, “há um clamor universal pela eficiência em todos os sectores da sociedade, em todos os aspectos da vida.”)

Há um compreensível lado sedutor na ideia de “eficiência” enquanto promessa de manter o trabalho, mas fazendo-o melhor, de forma mais barata e num período de tempo mais curto. O que é que isto tem de mal? Com excepção dos que pensam que os humanos são máquinas – como acontecia com os operários da Bethlehem Steel -, não se vislumbra aqui um lado negro.

Ia o século XX a meio quando algo muito importante começou a mudar: todos nos tornámos Frederick Winslow Taylors. E começámos a ser os carrascos das nossas próprias vidas. À medida que a doutrina da eficiência se enraizava – com o ethos do mercado a alargar-se a outros sectores da sociedade e a vida a tornar-se cada vez mais individualista – incorporámos aquele pensamento. Nos tempos de Taylor, a eficiência era tida como uma forma de persuasão (ou de bullying) sobre os trabalhadores, que tinham de laborar mais em menos tempo; agora, é um regime a que nos auto-impomos.

Reza a história que o taylorismo saltou a fronteira da produtividade individual quando o presidente da Bethlehem Steel, Charles Schwab, contratou outro consultor, Ivy Lee, para promover o nível de eficiência dos seus executivos. Segundo os conselhos de Lee, os “mangas de alpaca” deveriam estabelecer todas as noites uma lista de seis prioridades para o dia seguinte e ir desbastando uma a uma. Como é que ninguém se tinha lembrado disto? Lee disse que queria testar a sua teoria ao longo de três meses e só depois quereria ser pago. Schwab aceitou e passado esse tempo Lee tinha nas mãos um chorudo cheque de 400 mil dólares – e com este episódio a indústria de gestão do tempo acabara de dar os primeiros passos.

Seguir-se-lhe-iam outros gurus, que escreveram livros que se vieram a tornar best-sellers e que propunham algumas alterações à técnica que estava na base do pensamento de Lee: estabelecer metas a longo prazo (é o caso de How to Get Control of Your Time and Your Life, de Alan Lakein, 1973, um autor que se vangloria de ter sido consultor da IBM e de Gloria Steinem e que inspirou um então jovem Bill Clinton) e introduzir valores espirituais (como The Seven Habits of Highly Effective People, publicado em 1989 pelo especialista em eficiência mórmon Stephen Covey).


Foto ROY SCOTT/GETTY IMAGES

Uma hipotética paz de espírito


Saber gerir o tempo era uma ideia que dava ao mundo uma certa noção de autocontrolo, algo que parecia estar a falhar ao ser humano – para o qual também começavam a falhar os valores sociais, tanto de índole religiosa quanto de sentido de comunidade. Na era em que a precariedade do emprego nos obriga a prestar contas ininterruptamente, termos a sensação de que sabemos gerir o tempo pode trazer alguma luz ao fundo do túnel. Para um trabalhador independente, seja freelancer ou labore na chamada “economia do biscate”, desenvolver noções de “eficiência individual” é mesmo uma questão de sobrevivência.

Acima de tudo, a questão de saber gerir o tempo deixa-nos a promessa de que ainda é possível dar algum sentido à vida apesar de vivermos num ambiente virado para a produção de lucro. É isso que nos explica Melissa Gregg em Counterproductive, um dos próximos livros a serem publicados nesta área. Recorrendo às ferramentas certas e ouvindo os “profetas” certos, um indivíduo conseguir-se-á realizar na vida cumprindo com brio as exigências do empregador. Este é um propósito “que se torna ainda mais evidente em tempos de crise económica”, como nos diz Gregg.


Mantemos um emprego, cumprimos com a mensalidade do empréstimo da casa ao banco, aguentamo-nos como pais. E, contudo, é raro que nesta economia moderna um destes gurus que nos ensinam a ser inumanamente proactivos pare por um segundo que seja para se questionar se não fazemos já o suficiente.

Sobretudo para quem está no lado oposto do espectro, para aqueles que auferem ordenados chorudos, a gestão de tempo sussurra-lhes algo ainda mais apetecível: uma hipotética paz de espírito. David Allen, rei dos gurus contemporâneos, escrevia em 2001, no best-seller Getting Things Done, que “é possível ter pela frente uma vastidão de coisas para fazer e ainda assim conseguir funcionar de forma produtiva, com a cabeça tranquila e com a sensação de descontracção de quem tem tudo sob controlo”. Continuava: “É possível perceber o que os atletas de artes marciais querem dizer quando falam em ter ‘a cabeça clara como água’ ou o que os atletas de alta competição designam como ‘o objectivo’.”

Como ressalva Gregg, não é à toa que nos pesa nos ombros a “produtividade pessoal” e sabermos conciliar e cumprir tudo aquilo que nos é exigido. Mantemos um emprego, cumprimos com a mensalidade do empréstimo da casa ao banco, aguentamo-nos como pais. E, contudo, é raro que nesta economia moderna um destes gurus que nos ensinam a ser inumanamente proactivos pare por um segundo que seja para se questionar se não fazemos já o suficiente.

Se quisermos ir mais fundo na questão, concluímos que até o básico dos básicos nisto da gestão do tempo promete mais do que dá. A tão falada eficiência de Taylor não passou de fogo de vista. A Bethlehem pagou-lhes largas quantias de dinheiro pelos seus préstimos mas despediu-o em 1901. E aquilo que Taylor propunha para a empresa não se reflectiu nos lucros. (O método de Taylor provou que, a longo prazo, os trabalhadores ficavam exaustos, logo incapazes de cumprir com o trabalho de forma sistemática e continuada.)


O trabalho expande-se de modo a preencher o tempo disponível para a sua realização”Cyril Northcote Parkinson, historiador

Da mesma forma, os fiéis dos conselhos dos gurus da produtividade – e falo com muitos anos de experiência própria – sabem que, nem de perto nem de longe, ficam com “a cabeça clara como água”. E isto aplica-se tanto ao desafio “Inbox zero” como ao trabalho em geral: quanto mais despachamos, mais temos para despachar. (Já em 1955, o historiador britânico Cyril Northcote Parkinson concluía que “o trabalho expande-se de modo a preencher o tempo disponível para a sua realização”, no que ficou conhecida como a Lei de Parkinson.)

Há ainda outro factor a considerar, a consciencialização. O primeiro conselho de um especialista da área é que mantenhamos um registo detalhado do tempo que gastamos, mas até isso nos impele a olhar para o relógio e ver os minutos a passar... até se esgotarem. O mesmo acontece quando nos dizem para nos mantermos focados nos objectivos a longo prazo: quanto mais o fazemos, mais desapontados vamos ficando no dia-a-dia, percebendo que não iremos conseguir. E, quando conseguimos e por breves instantes sentimos alívio, sabemos que se seguirão mais objectivos, logo, pior a emenda do que o soneto...

Devolvam o nosso tempo

Na história, encontramos um paralelo para tudo isto: o final do século XIX, quando apareceram os aparelhos que prometiam poupar trabalho às empregadas domésticas e donas de casa. Na altura, os avanços tecnológicos garantiam que um aspirador deixaria uma carpete impecável ao fim de poucos minutos; que a roupa não mais precisaria de ficar todo um dia esticada entre roldanas.

Em 1983, a historiadora Ruth Cowan escreveu no seu More Work for Mother (numa tradução livre, Mais Trabalho para a Mãe) que o trabalho doméstico não tinha ganho assim tanto... pelo menos em grande parte do século XX. Pelo contrário, assistimos ao aumento proporcional entre a eficiência no lar e aquilo que a sociedade passou a exigir como padrões de limpeza e de organização doméstica. Se a carpete da sala podia finalmente ficar perfeita, então teria de se apresentar sempre perfeita; se não era esperado que as roupas ficassem encardidas, então a sujidade passaria a ser tabu. É por esta e outras que se justifica a pergunta: será que o email que recebemos às 5h30 deve ficar sem resposta até ao nascer do sol?


Será que o email que recebemos às 5h30 deve ficar sem resposta até ao nascer do sol?

No Verão passado, durante um fim-de-semana muito quente, um conjunto de membros do movimento Take Back Your Time juntou-se numa das alas da Universidade de Seattle. Iriam discutir a sua missão de longa data, “eliminar a epidemia do excesso de trabalho” e o sentido de uma vida que não seja tão focada na produtividade individual. A conferência não estava particularmente concorrida, algo que os organizadores atribuíram ao facto de ser Agosto e haver muita gente de férias – e, sendo esta uma comunidade que clama uma atitude descontraída na vida, ninguém se queixa. Mas, nos dias que correm, ser-se contra a produtividade, ainda que de forma tímida, é uma atitude que pode ser lida como subversiva. Sobretudo num país como os Estados Unidos. Também é verdade que o Take Back Your Time não é um movimento conhecido pelas suas campanhas agressivas de marketing ou por angariar patrocínios de peso ou organizar eventos estratosféricos.

Durante a conferência, os oradores apresentaram esquemas alternativos com propostas de semanas de trabalho de quatro horas; jornadas completas, sem pausas; a rejeição de eleições marcadas para os fins-de-semana, quando as pessoas estão a descansar – propostas que, de uma forma geral, pretendem trazer para o estilo de vida americano modos de estar de países como Itália e Dinamarca. (Ser-se crítico da cultura de trabalho americana é estar constantemente com um olho no outro lado do Atlântico, no estilo de vida quase mítico dos escandinavos e da Europa do Sul.)


Porque é que havemos de pautar e justificar as nossas vidas ao compasso da economia? Não faz qualquer sentido!”John de Graaf, do movimento Take Back Your Time

Mas as propostas do movimento Take Back Your Time são mais radicais do que somente exigirmos ter mais tempo livre. Questionam a nossa atitude de que “fazendo mais e mais” seja a base do nosso pensamento. “Passamos a vida a ouvir pessoas a dizer que termos mais tempo livre irá beneficiar a economia”, afirma John de Graaf, o “nem por isso” muito descontraído cineasta de 70 anos que é a força motriz desta organização. “Mas porque é que havemos de pautar e justificar as nossas vidas ao compasso da economia? Não faz qualquer sentido!”

Quando alicerçamos a nossa atitude sobre o tempo na ideia de eficiência, uma das armadilhas mais matreiras é começarmos a tentar arranjar tempos livres... produtivos. Daí até darmos por nós a viajar para lugares remotos não pela experiência ou prazer da viagem mas para acrescentarmos “experiências” ao nosso baú mental ou para alimentar o feed do Instagram, vai um pulo. Quando damos longos passeios a pé ou corremos, fazemo-lo para melhorar a nossa saúde, não pelo lado prazenteiro de usufruir desses momentos; quando pensamos nas tarefas que nos cabem enquanto pais e mães, fazemo-lo já com o intuito de educarmos adultos para o sucesso.
Hipervalorizar a eficiência

Já em The Decline of Pleasure, o livro que o autor e crítico de teatro Walter Kerr escreveu em 1962, se dava conta da transformação que estaria a acontecer na nossa percepção do tempo: “Somos forçados a ler para tirar um proveito, a ir a festas para conseguirmos um contrato, a ir a almoços para encher a agenda com novos contactos... e ao fim-de-semana ficamos em casa a pensar como a vamos reconstruir.”

Numa cultura que hipervaloriza a eficiência, descanso e tempos livres só podem ser compreendidos à luz de terem um qualquer propósito – e descanso pode ser só recuperar para voltar a ter mais energia para o trabalho. (Algumas pessoas que estavam na conferência lembraram o apelo de Arianna Huffington para termos mais horas de sono. No caso dela, tudo indica que servem tão-somente para serem gastas a produzir mais.)


O crescimento pelo crescimento é a ideologia que preside à célula cancerígena”Robert Levine citando Edward Abbey

Se nada neste manancial de eficiência produz os benefícios de que estaríamos à espera, então o que nos resta? Na conferência do Take Back Your Time chegou-se a um consenso: as mudanças que possamos vir a fazer nas nossas vidas pessoais nunca serão suficientes. A revolução tem de começar durante o período de férias, em licenças de maternidade ou durante as compensações para horas extras. E enquanto não chegamos lá, mais vale contentarmo-nos com a ideia de que não somos assim tão eficientes – sabendo, e aceitando, que estaremos a declinar oportunidades, a desapontar pessoas, a deixar trabalho para amanhã. Há múltiplas tarefas que são essenciais à nossa sobrevivência. E muitas outras que podemos dispensar. E se não dispensamos é porque nos inculcam que elas são essenciais. Não é forçoso que ganhemos mais dinheiro, que atinjamos mais objectivos, que a todo o momento sintamos que nos estamos a realizar em todas as áreas. Num dos momentos mais calmos da conferência em Seattle, o psicólogo social Robert Levine citou o ambientalista Edward Abbey para nos lembrar que “o crescimento pelo crescimento é a ideologia que preside à célula cancerígena”.

O ethos da eficiência e da produtividade privilegia a saúde da economia em detrimento da felicidade do ser humano. Mas nem isso traz grande saúde ao mundo dos negócios. Claro que esta é uma lição que as empresas teimam em aceitar. “Anos depois de trabalhar como consultor para a Microsoft, tornei-me persona non grata”, confessa Tom DeMarco com um travo trocista no tom de voz. DeMarco tornou-se uma lenda no mundo da engenharia electrónica. Começou a carreira na Bell Telephone Labs, berço do laser e do transístor. Tornou-se, mais tarde, especialista na gestão de complexos projectos de software, terreno fértil para custos que sobem a pique, prazos que não se cumprem e duelo de egos. Nos anos 1980, DeMarco cometeu a heresia de afirmar que aumentar o tempo de trabalho para um empregado era a pior maneira de levar os projectos avante. Antes, concluiu ele, mais valia abrandar, dar folgas.

“Ao longo dos anos conheci muitas empresas. As melhores não eram as mais céleres. Talvez até essas fossem capazes, de quando em quando, de exercer pressão sobre os empregados, mas sobretudo no sentido de os motivar. A criatividade não é gratuita. Precisamos que as pessoas se descontraiam, que se sentem com as pernas para o ar e comecem a pensar.” Quando falamos de trabalho manual, a pressão do empregador junto do trabalhador pode até acelerar a capacidade de trabalho. Mas não se fique à espera que chovam boas ideias quando uma pessoa se sente entre a espada e a parede – é, precisamente, quando elas murcham.

Fazer puzzles


Quando pensamos na questão do tempo, grande parte do problema é que isso nos compele a olhar para o relógio, algo que, como comprovam vários estudos, enfraquece a qualidade do trabalho. Em 2008, investigadores norte-americanos levaram a cabo uma experiência com base no Teste de Iowa, que simula decisões que as pessoas tomam em tempo real num jogo de cartas com o qual se habilitam a ganhar pequenas quantias. A todos foi dado o mesmo tempo para cumprirem a tarefa – a alguns, foi-lhes dito que seria o tempo suficiente; a outros, que poderia ser mesmo à justa. Os resultados mostram que a performance do segundo grupo ficou muito aquém – contrariando a ideia feita, e sobretudo muito acalentada na classe jornalística, de que se trabalha melhor na proximidade da hora de fecho. A consciência de haver um tempo limite desencadeou reacções de ansiedade que interferiram no desempenho daquelas pessoas.

Os riscos não se ficam por aqui. Para DeMarco, qualquer aumento na capacidade de eficiência, seja a nível profissional ou pessoal, acarreta a necessidade de um contraponto: se nos livramos de uma inusitada carga de trabalho, também nos livramos dos benefícios de ter esse tempo livre. Uma consulta com o nosso médico de família pode ajudar a explicar o que DeMarco quer dizer. Quanto mais despachado for o médico, mais doentes tem e não será de estranhar ficarmos na sala de espera durante horas. (Afinal, uma fila de espera não passa disso mesmo: sermos agentes na eficiência de outrem. Pelo contrário, ser “ineficiente” num serviço de urgências ou numa unidade de cuidados intensivos é uma questão de vida ou de morte. Nestes serviços hospitalares, se o foco for única e exclusivamente dirigido para a melhor eficiência do pessoal médico, enfermeiro e auxiliar, os serviços podem ficar assoberbados e sem capacidade para receber casos extremos, que é a razão da sua existência.)


Foto LEE WOODGATE/ GETTYIMAGES

Um problema semelhante atinge as empresas que fazem pacotes de redução de custos e apenas estão focadas na maximização da eficiência dos seus trabalhadores: quantas mais horas lhes tomarem, quanto mais os sobrecarregarem, menos estas equipas ficam aptas a responder a novos e imprevistos desafios. Mais tempo livre precisa-se! E este tem de vir de dentro do sistema.

DeMarco escreveu que “uma organização onde seja possível acelerar mas não mudar o rumo das coisas é como um carro que tem um motor potente mas ninguém tem mãos para o conduzir”. A curto prazo, pode até fazer progressos, seja em que direcção for. A longo prazo, “vai acabar na estatística de mais um acidente”. No discurso de DeMarco, são recorrentes as analogias aos puzzles com números nos quais temos de saber mexer blocos de oito números numa matriz de nove até conseguirmos tê-los todos por ordem.

Se, de uma forma eficiente, preenchêssemos o quadrado vazio, bastaria adicionar ao puzzle uma nona peça. E, contudo, já não teríamos puzzle para resolver. Se vê que esta metáfora se encaixa na sua vida, então é porque a sua eficiência individual chegou ao topo – e não é por acrescentar mais um bloquinho que isso lhe vai trazer um particular benefício.

No limite, nesta ansiedade de sermos cada vez melhores gestores do nosso tempo – e que terá orientado as vidas de Frederick Winslow Taylor, Merlin Mann, a minha própria e se calhar a sua, que me lê –, encontramos algo que nos é muito familiar: o medo da morte. Diria o filósofo Thomas Nagel que se tivéssemos outra métrica de tempo além da da vida humana, por exemplo a do planeta ou do cosmos, “estaríamos todos mortos”. Não admira, pois, que nos empenhemos tanto em responder à questão de como dar o melhor uso possível aos nossos dias. Se soubéssemos a resposta talvez pudéssemos, como diria Séneca, evitar a sensação de que só quando chegamos ao fim da vida estamos prontos para começar a vivê-la. Morrer sabendo que não deixamos nada por fazer. Por outras palavras, a promessa da imortalidade.

Antídoto para uma vida frenética


Mas a demanda moderna pela produtividade pessoal, ancorada na filosofia da eficiência defendida por Taylor, leva as coisas muito mais longe. Sugere que, em sabendo nós quais as técnicas mais acertadas e mediante a aplicação de uma imensa autodisciplina, talvez sejamos capazes de encaixar tudo no sítio certo e ainda, por fim, sermos felizes. Cabe a cada um de nós – é-nos, aliás, exigido – maximizar a nossa produtividade. É uma ideologia conveniente tanto para quem lucra com o nosso árduo empenho quanto com o nosso impulso consumista. Mas pode funcionar também como profilaxia psicológica. Quanto mais nos convencermos de que temos tempo para tudo, evitando assim fazer escolhas difíceis, menos nos sentiremos obrigados a tomar consciência se o caminho que damos à nossa vida será o acertado.

A produtividade individual surge, então, como um antídoto para uma vida frenética. E, contudo, não passa de mais uma forma agitada de viver. Assim sendo, cumpre o papel psicológico expectável de uma vida frenética: manter-nos o mais distraídos possível e sem capacidade de autodiagnóstico sobre o que raio andamos a fazer com os nossos dias. “À medida que nos entregamos ao trabalho de forma mais empenhada e exigente, mais necessário será que o mantenhamos, de modo a que não haja tempos livres para parar e pensar”, escreveu de forma premonitória Friedrich Nietzsche. “Ter pressa é universal porque toda a gente está em fuga de si própria.”

Podemos ter o correio electrónico em ordem – mas algures vamos ter de nos confrontar com o facto de que a avalanche de emails e a urgência como lidamos com eles nada têm que ver com tecnologia. São manifestações de dilemas pessoais muito mais abrangentes. Que caminhos percorrer? Que caminhos abandonar? A que relações queremos dar prioridade nesta nossa tão curta vida? E resignando-nos a que teremos de deixar alguém desapontado, quem será? O que importa na verdade?

Quando Merlin Mann, de forma muito consciente, se confrontou com questões como estas, percebeu que as pessoas lhe iriam reclamar cada vez mais do seu tempo – à partida, para projectos válidos, mas ele percebeu que não conseguiria dar resposta a tudo. Nem usando o melhor e mais eficiente sistema para gerir todos os emails que recebia seria a solução. “Percebi finalmente isto: o email não é um problema técnico. É um problema do ser humano. E o ser humano não é algo que pura e simplesmente tenha conserto.”


Exclusivo PÚBLICO/The Guardian

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